O assunto de hoje é a reportagem de Charles Duhigg e David Barboza, do The New York Times, publicada em 27/1/2012 no Estado de São Paulo e na edição 679 do Observatório da Imprensa. Se não fosse tão sério e preocupante, o título da matéria poderia envolver trocadilhos e humor negro.
Segue na íntegra. Achei que pelo teor, era melhor reproduzir o texto inteiro que postar apenas o link.
TRABALHO DEGRADANTE
O custo humano embutido num iPad
Por Charles Duhigg e David Barboza em 31/01/2012 na edição 679
Reproduzido do Estado de S.Paulo, 27/1/2012; tradução de Terezinha Martino
A explosão arrasou o Edifício A5 numa tarde de maio do ano passado. Uma erupção de chamas torceu os tubos de metal como se fossem canudos jogados fora. Quando os operários na lanchonete correram para fora, viram uma fumaça negra saindo das janelas – era a área onde os empregados poliam milhares de estojos de iPads por dia. Duas pessoas morreram na hora e mais dez se feriram. Quando os feridos eram levados às pressas para as ambulâncias, um em particular chamava atenção. O rosto lambuzado, atingido pelo calor e a violência da explosão, deu lugar a uma pasta preta e vermelha no lugar da boca e nariz.
“Você é o pai de Lai Xiaodong?”, alguém perguntou quando o telefone tocou na casa de Lai. Seis meses antes, o jovem de 22 anos havia se mudado para Chengdu, sudoeste da China, para se tornar mais uma das milhões de peças humanas da engrenagem que move o maior, mais rápido e mais sofisticado sistema de manufatura no globo. “Ele está com problemas”, disse a pessoa do outro lado da linha ao pai de Lai, que não resistiu aos ferimentos.
Na última década, a Apple tornou-se uma das mais poderosas e bem-sucedidas empresas do mundo. A Apple e suas congêneres do setor de alta tecnologia alcançaram um ritmo de inovação jamais observado na história moderna. Contudo, os operários encarregados da montagem dos iPhones, iPads e outros aparelhos com frequência trabalham em condições terríveis, de acordo com empregados das fábricas, grupos de defesa dos trabalhadores e relatórios publicados pelas próprias companhias. Os problemas são tão variados quanto os ambientes de trabalho e os problemas de segurança – alguns mortais – são graves.
Os operários fazem horas extras excessivas, em alguns casos trabalham sete dias por semana e vivem em dormitórios superlotados. Alguns trabalham em pé por tanto tempo que suas pernas incham a ponto de quase não conseguirem andar. Empregados menores de idade ajudaram a fabricar produtos da Apple, fornecedores da companhia armazenaram inadequadamente lixo tóxico e falsificaram registros, segundo dados da empresa e grupos de defesa do trabalhador que, dentro da China, são considerados monitores independentes e confiáveis.
Mais preocupante ainda é o desprezo de alguns fornecedores pela saúde do trabalhador. Há dois anos, 137 funcionários de uma fornecedora da Apple no leste da China foram intoxicados depois de receberem ordens para usar uma substância química venenosa para limpar as telas do iPhone. No ano passado, houve duas explosões em fábricas de iPads que mataram quatro pessoas e deixaram 77 feridos. Antes mesmo dessas explosões, a Apple havia sido alertada para as condições perigosas na fábrica de Chengdu.
A Apple não é a única empresa de produtos eletrônicos que opera dentro de um sistema de suprimento preocupante. Condições terríveis de trabalho foram documentadas em fábricas de manufatura de produtos para a Dell, Hewlett-Packard, IBM, Lenovo, Motorola, Nokia, Sony, Toshiba e outras. Executivos da Apple dizem que a companhia adotou medidas importantes para melhorar as fábricas nos últimos anos. A empresa criou um código de conduta para seus fornecedores, detalhando os critérios a serem obedecidos em termos de trabalho e segurança. A empresa organizou uma campanha de auditoria. Abusos foram descobertos e correções foram exigidas.
Mas os problemas importantes continuam. Mais da metade das fornecedoras inspecionadas pela Apple violaram pelo menos uma norma do código de conduta a cada ano desde 2007, de acordo com relatórios da Apple. “A Apple nunca se preocupou com qualquer outra coisa a não ser melhorar a qualidade do produto e reduzir os custos de produção”, disse Li Mingqi, que trabalhou até abril na administração na Foxconn, uma das mais importantes parceiras da Apple na China. Li, que está processando a Foxconn por ter sido despedido, trabalhava na fábrica de Chengdu quando ocorreu a explosão.
A Apple recebeu um resumo desse artigo, mas não quis comentá-lo. A reportagem foi baseada em entrevistas com mais de 30 funcionários, antigos e atuais, e contratantes, incluindo alguns executivos com conhecimento do grupo de responsabilidade do fornecedor da Apple.
Emprego
Quando conseguiu o emprego na Foxconn, Lai Xiaodong sabia que a fábrica em Chengdu era especial. Os trabalhadores estavam produzindo o mais recente produto da Apple: o iPad.
Lai, que consertava máquinas da fábrica, logo de início notou as luzes quase ofuscantes. Os turnos eram de até 24 horas e a unidade estava sempre iluminada. A qualquer momento, havia milhares de operários em pé nas linhas de montagem, agachados perto das grandes máquinas ou correndo entre as plataformas de carga. As pernas de alguns estavam inchadas.
Cartazes nas paredes alertavam os 120 mil empregados: “Trabalhe com afinco no seu emprego hoje ou vai ter de trabalhar duro para encontrar um emprego amanhã.” O código de conduta da Apple estabelece que, salvo em circunstâncias excepcionais, os operários não devem trabalhar mais de 60 horas por semana. Mas, na Foxconn, alguns trabalhavam bem mais, segundo entrevistas, holerites e investigações de grupos independentes.
Lai logo passou a trabalhar 12 horas por dia, seis dias na semana. Havia “turnos contínuos” e então os operários recebiam ordens para trabalhar 24 horas seguidas. O grau universitário permitiu que o jovem ganhasse um salário de US$ 22 por dia, incluindo horas extras. Ao sair do trabalho, ele se recolhia num pequeno aposento, suficiente para abrigar um colchão, um guarda-roupa e uma mesa.
Essa acomodação era melhor do que muitos dormitórios da empresa, onde viviam 70 mil empregados da Foxconn, às vezes com 20 pessoas espremidas em um apartamento de três quartos. Em 2011, uma disputa sobre salários desencadeou um motim num dos dormitórios.
Em nota, a Foxconn contestou os relatos de funcionários sobre os turnos contínuos, as horas extras e as acomodações abarrotadas. Segundo a empresa, ela respeitava os códigos de conduta da Apple. “Todos os empregados da linha de montagem têm pausas regulares, incluindo uma hora para o almoço”, escreveu a companhia, afirmando que somente 5% dos empregados realizavam suas tarefas em pé.
Auditorias não inibem abusos
Em 2005, alguns executivos do alto escalão da Apple se reuniram em sua sede em Cupertino, Califórnia, para um encontro especial. Outras empresas haviam criado códigos de conduta para policiar seus fornecedores. A Apple entendeu que estava na hora de seguir o exemplo.
O código da companhia publicado naquele ano exigia que “as condições de trabalho na cadeia de suprimento da Apple sejam seguras, os trabalhadores sejam tratados com respeito e dignidade e os processos de manufatura sejam responsáveis em termos de meio ambiente”. Mas, no ano seguinte, o jornal britânico The Mail on Sunday visitou secretamente a Foxconn em Shenzen, China, onde os iPods eram fabricados, e publicou uma reportagem sobre as longas horas de trabalho a que os trabalhadores eram submetidos, obrigados a fazer flexões a título de punição, e a aglomeração nos dormitórios. Os executivos em Cupertino ficaram chocados.
A Apple realizou uma auditoria nessa fábrica, a primeira inspeção do tipo, e ordenou mudanças. Os executivos também adotaram uma série de iniciativas que incluíam um relatório de inspeção anual, o primeiro publicado em 2007. No ano passado, a Apple inspecionou 396 fábricas – de fornecedoras diretas da companhia e também muitas das empresas que fornecem para essas empresas –, um dos mais amplos programas do tipo dentro do setor eletrônico.
As auditorias revelaram graves violações do código de conduta da Apple, de acordo com resumos publicados pela empresa. Em 2007, por exemplo, das mais de 30 inspeções realizadas pela Apple, dois terços delas indicaram que os operários trabalhavam regularmente mais de 60 horas semanais. Além disso, seis “violações graves” haviam ocorrido, incluindo a contratação de menores de 15 anos, além da falsificação de registros.
Nos três anos seguintes, a Apple realizou 312 auditorias e a cada ano metade ou mais delas deixaram evidente que um grande número de empregados estava trabalhando mais de seis dias por semana e fazendo horas extras excessivas. Nesse período, descobriu 70 violações graves.
Abusos
Em 2011, a companhia realizou 229 inspeções. Foram observadas ligeiras melhoras em algumas categorias e o número de violações graves diminuiu. No entanto, 93 auditorias revelaram que pelo menos metade dos empregados continuava trabalhando mais de 60 horas por semana. Um número similar mostrou que os operários trabalhavam mais de seis dias por semana. “Se você vê o mesmo tipo de problemas, ano após ano, isso significa que a empresa está ignorando o problema, não resolvendo-o”, disse um ex-executivo da Apple.
Segundo a Apple, quando uma auditoria descobre uma violação, ela exige que os fornecedores resolvam o problema num prazo de 90 dias e realizem as mudanças para evitar que se repita. “Se um fornecedor não fizer as mudanças, encerramos nossa relação comercial”, diz a empresa no seu website.
A seriedade dessa ameaça, no entanto, não está clara. A Apple registrou violações em centenas de inspeções, mas pouco menos de 15 fornecedores foram excluídos por causa de transgressões desde 2007, segundo ex-executivos da companhia.
Explosão
No dia da explosão na fábrica de iPads, Lai Xiaodong telefonou para sua namorada, como fazia todos os dias. Ele pretendiam se encontrar naquela noite, mas o gerente de Lai convocou-o para fazer hora extra, ele disse. Lai tinha sido promovido na Foxconn e depois de apenas cinco meses ficou encarregado da equipe de manutenção das máquinas polidoras dos estojos dos iPads.
A atividade na fábrica era frenética, disseram os empregados. Máquinas em fila poliam os estojos, enquanto os empregados de máscara apertavam os botões. Um grande duto de ventilação pairava sobre cada estação de trabalho, mas os ventiladores não davam conta das três fileiras de máquinas polindo sem parar. Havia pó de alumínio por toda parte. O pó é um conhecido risco à segurança.
Duas horas depois que Lai já estava no seu segundo turno, o prédio começou a tremer, como se um terremoto estivesse ocorrendo. Houve uma série de explosões, disseram os operários. Quatro pessoas morreram e 18 se feriram. No hospital, a namorada de Lai viu que havia queimaduras na sua pele. Finalmente, sua família chegou. Mais de 90% do seu corpo tinha sido queimado.
Depois que Lai morreu, os trabalhadores da Foxconn foram à cidade natal dele levando uma urna com suas cinzas. A família recebeu US$ 150 mil. Num comunicado, a Foxconn, disse que no momento da explosão, a fábrica estava cumprindo com todas as normas e leis.
No seu mais recente relatório sobre a responsabilidade dos fornecedores, a Apple disse que, após a explosão, a empresa entrou em contato com os “mais destacados especialistas em segurança de processos industriais” e montou uma equipe para investigar e fazer recomendações para prevenir acidentes.
Em dezembro, porém, sete meses após a explosão que matou Lai, uma outra fábrica de iPad explodiu, desta vez em Xangai. Novamente, o pó de alumínio foi a causa, de acordo com entrevistas realizadas e o relatório da Apple. A explosão provocou ferimentos em 59 operários, 23 foram hospitalizados.
Em seu mais recente relatório, a Apple escreveu que, embora as duas explosões tenham envolvido o pó de alumínio, as causas das explosões foram distintas. Mas não forneceu mais detalhes.
Para a família de Lai, uma pergunta persiste. “Não sabemos ainda com certeza por que ele morreu”, diz a mãe de Lai, de pé ao lado de um pequeno oratório próximo da sua casa. “Não entendemos o que ocorreu.”
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[Charles Duhigg e David Barboza, do New York Times]
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